Ao longo de todo o século XX, a educação infantil viveu sob o signo do arremedo, da improvisação e do desconhecimento de sua importância para o desenvolvimento humano. Vinculada, quando muito, a ações governamentais do campo da saúde e, principalmente, da assistência social, foi apenas nos estertores do século passado que a educação infantil, afinal, foi reconhecida como primeira etapa da educação básica, sucedida pelas demais etapas (ensino fundamental e ensino médio), nos termos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN nº 9.394/1996), de 20 de dezembro de 1996, a apenas quatro anos do final do século, não obstante as advertências que já eram feitas pela pesquisa educacional, desde os anos 1980, sobre o caráter educativo da abordagem das pequenas infâncias no contexto escolar.
Com efeito, o reconhecimento, ainda que tardio, da educação infantil como etapa da educação básica deve-se, em grande medida, aos avanços descomunais da pesquisa em educação e das práticas pedagógicas, vividas no cotidiano escolar, que fortaleciam a interação direta de docentes com as pequenas infâncias. De fato, as pesquisas e as práticas foram mostrando, de maneira incontestável, que a educação infantil é indispensável ao desenvolvimento de bebês e de crianças, do ponto de vista intelectual/cognitivo, da afetividade e da sociabilidade, da dimensão psicomotora e da formação ética.
No campo da pesquisa educacional brasileira, é justo reconhecer, sem demérito a nenhuma outra contribuição, a atuação matricial de intelectuais como Ana Lúcia Goulart de Faria, Fulvia Rosemberg, Maria Malta Campos, Sonia Kramer e Vera Vasconcellos, que formaram gerações de professoras(es) de educação infantil, novas safras de pesquisadoras(es) e escolas de pensamento, determinantes para a consolidação da educação infantil como atividade profissional-docente especializada e como área do conhecimento no campo das ciências da educação, processo ainda em curso.
No tocante às políticas públicas, o caminho da educação infantil tem sido muito tortuoso. A despeito de seu reconhecimento pela LDBEN de 1996, neste mesmo ano, quando o Congresso Nacional promulgou a Emenda Constitucional (EC) nº 14/1996, que instituiu o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF), a educação infantil não foi contemplada, o que lamentavelmente consagrou o quadro de subfinanciamento de escolas públicas de educação infantil em todo o Brasil.
Vivi na pele tal situação, quando assumi a Secretaria de Educação de Niterói (RJ), no ano de 2005, e constatei que as Unidades Municipais de Educação Infantil (UMEIs) eram tratadas, sob certos aspectos, como “sub-escolas”: não faziam jus ao cargo de diretor adjunto; suas verbas escolares eram inferiores aos valores destinados a escolas de ensino fundamental de igual porte; planejamento pedagógico e formação continuada não eram assegurados, com a mesma desenvoltura, a docentes da educação infantil, em comparação com seus colegas do ensino fundamental, entre outros exemplos.
Busquei enfrentar esse quadro de depreciação da educação infantil desde logo, mas, na ocasião, não pude contar com recursos do FUNDEF, impedido que estava de destiná-los à educação infantil, sob pena de responsabilização em face dos órgãos de controle: um disparate!
Ainda sobre a saga da educação infantil, vale lembrar que foi apenas com a LDBEN de 1996 que se equipararam os requisitos de escolaridade para o exercício do magistério da educação infantil e dos anos iniciais do ensino fundamental, conforme dispõe o seu artigo 62. Até então, as exigências formais de escolaridade para a atuação docente na educação infantil eram fluidas, difusas, indefinidas. A tal ponto que, mesmo depois da sanção da LDBEN de 1996, em audiência pública no Conselho Nacional de Educação, no ano 2000, onde me encontrava como um dos representantes da delegação do Fórum Nacional de Diretores de Faculdades de Educação das Universidades Brasileiras (FORUMDIR), travei duro embate com uma renomada conselheira, intelectual conhecida do campo da educação brasileira, quando contestei sua afirmação, verdadeira pérola: “Ora, professor, para lecionar na educação infantil, basta que as ‘moças’ gostem de crianças e tenham boas pernas para correr atrás delas...”!
Essa manifestação, feita por um membro do Conselho Nacional de Educação, órgão normativo do Sistema Federal de Ensino, em plena audiência pública sobre o papel da universidade na formação de professores da educação básica em nível superior, realizada no plenário daquele órgão federal, dá a justa medida sobre a visão, ainda presente no século XXI, de que a educação infantil poderia se realizar apenas sob a égide do improviso e da boa vontade.
Na substituição do FUNDEF, dez anos depois de sua criação, pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), foi preciso organizar um movimento social para lutar pela inclusão da educação infantil no novo fundo de financiamento público da educação. Mais uma vez, ainda não estava claro para a sociedade brasileira que a educação infantil, embora naquela altura legalmente inscrita há dez anos como etapa da educação básica, precisava de recursos assegurados às escolas públicas que educavam as pequenas infâncias. Foi grande a movimentação de intelectuais, professoras de educação infantil, coletivos organizados da sociedade e setores do parlamento brasileiro, que deram forma ao movimento popularizado como “fraldas pintadas”, em alusão às crianças e ao movimento social que, no início dos anos 1990, foi às ruas lutar pela deposição do presidente Fernando Collor de Mello.
No final dos anos 2000, outro passo importante foi dado em relação à consagração da educação infantil como etapa da educação básica: aprovou-se o mandamento constitucional que determinou a obrigatoriedade de escolarização para crianças e adolescentes de 4 a 17 anos, ou seja, alcançando a faixa etária correspondente ao pré-escolar (4 e 5 anos). Com efeito, ainda que a Emenda Constitucional nº 59/2009 tenha ampliado a faixa etária de escolarização obrigatória no Brasil, porém sem declarar obrigatórias as etapas da educação infantil e do ensino médio (até hoje, a única etapa obrigatória, na forma da lei, é o ensino fundamental), é obviamente um avanço importante obrigar, por meio do dispositivo constitucional, que os municípios assumam responsabilidades com a educação de parte das pequenas infâncias, antes de seu ingresso no ensino fundamental.
No entanto, faltaram - e ainda faltam - as garantias para a educação de bebês de 0 a 3 anos, a etapa da creche, o que, pouco mais de 15 anos depois da promulgação da EC nº 59/2009, já se tornou um dos maiores desafios à garantia do direito à educação na sociedade brasileira: a oferta de vagas em creches públicas.
Nessa trajetória, é claro que há valorosas iniciativas que merecem ser pontuadas. Refiro-me aqui a duas. Em primeiro lugar, no contexto de Niterói, a proposta pedagógica “Escola de Cidadania”, coletivamente construída em diálogo permanente com escolas e profissionais da rede municipal de educação, no período de 2005 a 2008, no governo Godofredo Pinto, consolidou uma compreensão pioneira sobre a complexidade do trabalho docente na educação infantil. De fato, não apenas se afirmava teoricamente que a educação e o cuidado são indissociáveis no magistério da educação infantil, e nisso não havia pioneirismo, mas, aí sim, entendeu-se que não era o caso de separar a dimensão educativa, reservada a professores, e a dimensão do cuidado, a cargo de auxiliares (agentes de educação infantil). Nesse diapasão, surgiu o projeto da bidocência, pois não estava mais em questão a necessidade de dois profissionais nas turmas ou grupos de educação infantil - isso já era pacífico -, mas sim a compreensão de que deveriam ser dois profissionais docentes.
Tal perspectiva contribuiu também para evitar a divisão social do trabalho na educação infantil, quando se tinha, muitas vezes, a leitura equivocada de que as agentes de educação infantil eram, por assim dizer, “empregadas” das(os) professoras(es). Nada mais equivocado! A referência epistêmica da bidocência é a complexidade da educação infantil, estruturada no binômio educar e cuidar ou, se quisermos, no trinômio educar, cuidar e brincar, sendo que todas essas dimensões constituem o trabalho docente junto às pequenas infâncias.
Por isso, não se trata aqui de questão situada apenas no campo das diretrizes operacionais da educação infantil, tal como expresso na Resolução nº 01/2024, do Conselho Nacional de Educação/Câmara de Educação Básica. Estamos, isto sim, no campo da epistemologia das infâncias e do trabalho docente na educação infantil. Nos municípios em que esse avanço epistemológico e pedagógico - e, em decorrência, operacional - se consolidou, como é o caso de Niterói, é evidente que se constitui como retrocesso a supressão da bidocência na educação infantil.
Como toda experiência humana, por definição sempre imperfeita ou incompleta, é claro que a bidocência também enfrentou contradições e requer aperfeiçoamentos. Afinal, ela não é um mecanismo de rodízio entre professores, como também não é um dispositivo que pode funcionar a contento com docentes que atuam em regime parcial. O “tipo ideal” da bidocência é a presença de dois professores, em regime integral, atuando, ao longo do mesmo ano ou período letivo, na mesma turma ou grupo de bebês ou de crianças.
A bidocência também não é remédio nem obstáculo para questões ligadas ao provimento do efetivo docente necessário à rede escolar, ou seja, sua adoção não pode ser vista como um estorvo na gestão do pessoal docente nem sua supressão pode ser tomada como solução para preencher as vacâncias estruturais de professores. O que resolve vacância estrutural ou permanente de docentes em uma rede pública é a realização de concurso público e a convocação dos aprovados em simetria com a carência de professores atestada por diagnóstico cuidadoso.
Na mesma linha, não se pode resolver problemas de carência na oferta de vagas na educação infantil com aumento na modulação de bebês ou de crianças nas turmas ou grupos, ainda que sejam observados os patamares máximos fixados nos dispositivos legais ou infralegais que regulam a matéria, no caso, especificamente, as já citadas diretrizes que emanam do Conselho Nacional de Educação. De novo: a questão aqui não é apenas sobre a adequação a parâmetros oficiais, mas, antes, sobre a opção política de preservar ou de desmontar padrões elevados que uma determinada rede pública de educação infantil (isso também vale para outras etapas da educação básica) já tenha alcançado. Apequenar esse padrão, mesmo que a rede se mantenha dentro dos balizamentos oficiais, é igualmente um retrocesso.
A propósito, tais diretrizes não impedem, em absoluto, que as redes municipais de educação avancem para além das balizas por elas estipuladas. A fixação de parâmetros máximos, por exemplo, no caso da modulação de bebês ou de crianças nas turmas ou grupos de educação infantil, não obsta que prefeitos e secretários de educação coloquem as escolas das redes que dirigem abaixo daquele patamar máximo, a fim de atingir níveis de qualidade almejados ou de preservar patamares qualitativos já conquistados.
Reconheço, é claro, os desafios de custear a concepção do trabalho docente na educação infantil traduzida na bidocência. Sou capaz de entender que uma determinada rede pública de educação, confrontada a limites orçamentários intransponíveis, terá dificuldade de praticar a bidocência na educação infantil, se tiver que deixar “ao relento” turmas ou grupos de ensino fundamental que não dispõem de professor. Mas esse dilema, presente em boa parte dos 5.570 municípios brasileiros, não atinge municipalidades com orçamentos bilionários, como Campinas (SP), Maricá (RJ), Guarulhos (SP), São Bernardo do Campo (SP) e Niterói (RJ), apenas para citar alguns municípios ricos, que não são capitais, posicionados entre os maiores orçamentos do Sudeste brasileiro.
Em segundo lugar, é justo fazer menção, ainda que brevemente, ao Programa Brasil Carinhoso, lançado no primeiro governo Dilma Rousseff, cujo foco é a manutenção e o desenvolvimento da educação infantil, assim como o cuidado integral e a segurança alimentar e nutricional das pequenas infâncias, com destaque para o apoio federal à construção de creches em diferentes municípios brasileiros. Infelizmente, a queda do preço do petróleo no mercado internacional de commodities em 2014; as repercussões econômicas do lavajatismo; os equívocos políticos do início do segundo governo Dilma; o golpe de Estado de 2016; as mudanças constitucionais, durante o governo ilegítimo de Michel Temer (2016-2018), que reduziram drasticamente a capacidade de investimento do Estado brasileiro (EC nº 93/2016 e EC nº 95/2016); e o governo neofascista de Jair Bolsonaro (2019-2022), que hostilizou a educação, a ciência e a cultura, pulverizaram aquela importante iniciativa de fortalecimento da política pública de educação infantil, que acabara de ser elevada à condição de agenda de Estado prioritária. No terceiro governo Lula, tal Programa vem sendo retomado, mas ainda sem a ênfase alcançada em seus primeiros anos de implementação.
De volta ao caso específico de Niterói, acerca da decisão da prefeitura de suprimir a bidocência na educação infantil, parece-me extremamente lúcida a recente recomendação do Ministério Público, manifestada por meio da coordenadora do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Tutela Coletiva de Proteção à Educação (CAO Educação/MPRJ), no sentido de conclamar o governo local a usar o instrumento de que já dispõe, qual seja, um concurso público em vigência, de modo que possa convocar os aprovados e, gradual mas firmemente, restaurar a bidocência, importante diferencial da educação infantil em Niterói.
Diferencial, diga-se de passagem, consolidado, de forma inequívoca, por recente ato oficial do município de Niterói. Com efeito, os Referenciais Curriculares Municipais da Educação Infantil (RCMEI) de Niterói, fruto de trabalho coletivo empreendido e sistematizado no período de 2017 a 2020, foram oficialmente publicados como ato conjunto da Secretaria Municipal de Educação e da Fundação Municipal de Educação (Portaria Conjunta nº 04, de 25 de abril de 2023), com base na Deliberação nº 46/2021, do Conselho Municipal de Educação de Niterói, de idêntico teor. Nos RCMEI, há uma seção específica intitulada “Bidocência: desafio de uma caminhada conjunta”, onde são restituídos os marcos legais da educação infantil no Brasil e discutidos aspectos do processo ensino-aprendizagem nesta etapa de escolaridade, apontando-se a bidocência como uma escolha intencional do município de Niterói para a melhoria do trabalho pedagógico na educação infantil, porquanto mais sensível e atento às necessidades de bebês e de crianças: “A bidocência no município de Niterói se apresenta como uma conquista e um indicador de qualidade no que se refere ao atendimento infantil e ao trabalho pedagógico de seus docentes” (RCMEI-Niterói, 2023, p. 148).
Para finalizar, afirmo que, dialeticamente, a crise pode ser o caminho da sua própria superação, desde que se instale um diálogo permanente entre prefeitura, escolas, profissionais da educação e sua representação sindical, processo que teria potencial até mesmo para produzir aprimoramentos necessários ao instituto da bidocência, com base no balanço dos quase vinte anos transcorridos desde a sua implantação. Nessa perspectiva, uma ideia promissora, por exemplo, poderia ser a regulamentação da bidocência como lei municipal, o que daria mais “segurança jurídica e pedagógica” às unidades escolares que a praticam e aos gestores que administram, em diferentes escalões, a educação municipal.
Não se deve recuar na educação infantil. Nem para tomar impulso!
* Waldeck Carneiro é Professor Titular da Universidade Federal Fluminense (UFF) e Coordenador-Geral do Fórum Nacional de Gestão Democrática da Educação (FORGEDE). Foi Diretor da Faculdade de Educação da UFF (1999-2003 e 2003-2004) e Secretário de Educação de Niterói (2005-2008 e 2013-2014).